Caso
Renato Passini Júnior Roxana Knobel
Mary Ângela Parpinelli Belmiro Gonçalves Pereira
Eliana Amaral Fernanda Garanhani de Castro Surita
Caio Rogério de Araújo Lett
Gravidez abdominal calcificada com dezoito anos de evolução: relato de caso
Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
ABSTRACT
CONTEXTO: O litopédio (gravidez abdominal calcificada) é um fenômeno raro e há menos de 300 casos relatados na literatura médica.
RELATÓRIO DO CASO: Neste caso, uma paciente de 40 anos de idade tinha tido sua única gravidez 18 anos antes, sem assistência médica desde então. Ela veio ao nosso hospital com dor e massa tumoral de aproximadamente 20 centímetros de diâmetro. Os exames complementares (radiografia abdominal, ultra-sonografia e tomografia computadorizada) demonstraram uma gravidez extra-uterina abdominal de 31 semanas com áreas de calcificação. Foi realizada laparotomia exploratória, com extirpação de um feto bem conservado com membranas ovulares parcialmente calcificadas.
PALAVRAS-CHAVE: Gestações abdominais. Litopedião. Lithokelyphopedion. Morte fetal.
INTRODUÇÃO
Litopedion (litho = pedra; pedion = criança) é o nome dado a uma gravidez extra-uterina que evolui para morte fetal e calcificação. É um fenômeno raro que vem principalmente de uma gravidez abdominal. A incidência da gravidez abdominal é de 1:11.000 gestações e a litopediona ocorre em 1,5 a 1,8% desses casos.1,3 Houve menos de 300 casos em 400 anos de literatura médica mundial.2,3,4 Devido ao aumento da doença pélvica inflamatória e da cirurgia das trompas uterinas, houve um aumento da gravidez ectópica.1 Por outro lado, a ocorrência de gravidez abdominal e litopedião tende a se tornar ainda mais rara devido aos cuidados médicos e pré-natais se tornarem mais acessíveis à população, com possibilidade de diagnóstico e tratamento precoce da patologia.1,4
RELATÓRIO DE CASO
Uma mulher de 40 anos de pele marrom tinha uma queixa primária de dor no abdômen inferior. A paciente relatou crescimento abdominal regular e atividade fetal saudável de uma gravidez que ocorreu 18 anos antes. Ela nunca havia feito acompanhamento pré-natal. No terceiro trimestre, ela começou a sentir fortes cólicas no abdômen inferior ao mesmo tempo em que a atividade fetal desaparecia. Ela não tinha procurado assistência médica e algumas semanas depois ela tinha eliminado uma massa vermelha escura através da vagina com aparência de placenta.
Tinha experimentado as modificações características da lactação mamária. O abdómen tinha começado a diminuir mas reteve uma massa infra-umbilical de cerca de 20 centímetros de diâmetro, móvel e indolor. Alguns meses antes de ser vista no nosso serviço, ela começou a sentir dor no baixo ventre e procurou assistência médica.
A sua história ginecológica era de hemorragia menstrual regular, começando na menarca e novamente após a gravidez. Ela nunca tinha usado nenhum método contraceptivo.
O exame físico revelou uma massa infra-umbilical de aproximadamente 20 centímetros de diâmetro que era móvel e endurecida. O útero estava sem modificações na gravidez. A radiografia abdominal (Figura 1) e a tomografia computadorizada mostraram a presença de um feto ectópico em um ramo de vaso sanguíneo mesentério, com calcificações periféricas. Os exames ultra-sonográficos mostraram um útero vazio, ovários regulares e a presença de um feto de 31 semanas (determinado a partir do comprimento do fêmur).
Foi feita uma hipótese de litopédio, e devido aos sintomas clínicos e ao desejo da paciente de remover a massa, foi feita uma laparotomia exploratória. Após a realização da celiotomia parietal, foi observado um tumor oval com aderência do ovário direito e epiploon (Figura 2). Mediu 15 x 25 centímetros e pesou 1.890 gramas. Era composto por uma membrana ovular calcificada aderida a um feto, que foi dissecada e provou estar bem conservada e parcialmente calcificada (Figura 3). A cirurgia foi bem sucedida, sem complicações, e a paciente saiu do hospital após três dias.
DISCUSSÃO
Nos casos relacionados na literatura, a idade dos pacientes na data do diagnóstico variou de 23 a 100 anos, sendo que 2/3 deles tinham mais de 40 anos de idade. O período de retenção fetal foi de 4 a 60 anos. A morte fetal ocorreu entre 3 e 6 meses de gestação em 20% dos casos, entre 7 e 8 meses em 27% e a termo em 43% dos casos.2,4
Gravidez abdominal resulta da ruptura da gravidez tubária ou ovariana com implantação da cavidade abdominal.1,3 O desenvolvimento da litopedião ocorre sob certas condições: (1) gravidez extra-uterina; (2) morte fetal após 3 meses de gravidez; (3) o óvulo deve ser estéril; (4) não pode haver nenhum diagnóstico precoce; (5) devem existir condições locais para precipitação de cálcio (depósito).1,2,4 O desenvolvimento desta gravidez é o mesmo que o da gravidez intra-uterina abdominal até a morte fetal. Após este tempo, ocorre desidratação dos tecidos e infiltração de cálcio.1,3,4
Gravidez abdominal que calcifica-se é genericamente chamada litopedião e pode ter as seguintes formas: (1) lithokelyphos (litho = rocha, kelyphos = concha): apenas a membrana ovular é calcificada e o feto pode estar em diferentes estágios de decomposição; (2) lithokelyphopedion: ambos são calcificados, ou seja, feto e membrana ovular, como neste caso; (3) lithopedion: apenas o feto é calcificado.4
Embora a maioria dos casos permaneça assintomática durante anos, pode ocorrer dor pélvica, sensação de peso no abdômen e sintomas compressivos, afetando especialmente a bexiga e o reto.2,3 Algumas complicações associadas têm sido relatadas após uma longa evolução assintomática: perfuração da bexiga e reto urinário; extrusão de partes fetais através da parede abdominal, reto e vagina; obstrução intestinal (devido à colisão de partes fetais com o intestino ou aderência) e vólvulo.3,4
O diagnóstico é revelado por uma história clínica sugestiva, uma massa pélvica encontrada durante os exames físicos e, freqüentemente, uma radiografia do abdômen é suficiente para confirmar o diagnóstico.3,4 O exame ultra-sonográfico mostra uma cavidade uterina vazia e um aspecto inespecífico da massa abdominal, confundindo o diagnóstico.2 A tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética nuclear definem claramente a patologia e ajudam no diagnóstico de aderência e outros órgãos afetados, embora estes não sejam absolutamente necessários.2,3,4 Alguns autores sugerem a urografia excretora e a radiografia de enema para avaliar a compressão ou alterações em órgãos ou sistemas próximos a ela.
O diagnóstico a diferencia de outras massas calcificadas como tumores ovarianos, miomas, massas inflamatórias, tumores urinários e vesicais e calcificações por epiploon.4 Há casos relatados sem a extirpação cirúrgica do litopédio2. Devido à possibilidade de complicações, mesmo após anos de evolução, o procedimento adequado é a remoção cirúrgica.
A cirurgia é freqüentemente simples com baixo sangramento. Não há relato de morte intra-operatória, mesmo em pacientes idosos.3,4 Entretanto, recomenda-se extremo cuidado no procedimento cirúrgico com a ajuda de um cirurgião geral ou urologista, devido à possibilidade de grandes quantidades de vasos sanguíneos abdominais e aderência intestinal.
1. Costa SD, Presley J, Bastert G. Gravidez abdominal avançada. Obstet Gynecol Surv 1991;46:515-25.
2. Frayer CA, Hibbert ML. Gravidez abdominal em uma mulher de 67 anos sem ser detectada há 37 anos: um relato de caso. J Reprod Med 1999;44:633-5.
3. Irick MB, Kitsos CN, O’Leary JA. Aspectos terapêuticos no manejo de um litopédio. Am Surg 1970;36:232-4.
4. Spiritos NM, Eisenkop SM, Mishell DR. Lithokelyphos: um relato de caso e revisão de literatura. J Reprod Med 1987;32:43-6.
RESUMO
CONTEXTO: O Litopédio (gestação abdominal calcificada) é um fenômeno raro, com menos de 300 casos descritos na literatura.
RELATO DE CASO: Uma paciente de 40 anos, teve uma única gestação há 18 anos e não procurou serviço médico desde então. Chegou com dor em baixo ventre e massa tumoral de aproximadamente 20 centímetros. Os exames complementares (radiografia abdominal, ecografia e tomografia computadorizada) evidenciaram gestação de aproximadamente 31 semanas extra-uterina e com áreas de calcificação. Foi realizada laparotomia com extração do feto em bom estado de conservação, envolvido pela membrana parcialmente calcificada.
PALAVRAS-CHAVE: Gravidez abdominal. Litopédio. Lithokelyphopedion. Morte fetal.
PUBLISHING INFORMATION
Renato Passini Júnior, MD, PhD. Professor Assistente, Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.
Roxana Knobel, MD, MSc. Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
Mary Ângela Parpinelli, MD, PhD. Professora Assistente, Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.
Belmiro Gonçalves Pereira, Médico, Doutor. Professora Assistente, Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.
Eliana Amaral, Médica, Doutora. Assistant Lecturer, Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.
Fernanda Garanhani de Castro Surita, MD, MSc. Department of Obstetrics & Gynecology, Faculty of Medical Sciences, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brazil.
Caio Rogério de Araújo Lett, Médico. Médico Residente, Departamento de Obstetrícia & Ginecologia, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.